POR UM TEATRO NAO BURGUES, NÃO COLONIZADO, INQUIETO, PROVOCADOR, NÃO ACOMODADO, Ñ VENDIDO, INCORPORADO PELA POLITICA, UM TEATRO CAPACHO, MAS SIM UM TEATRO VIVO BASEADO na SIMBIOSE DE ARTES , estudo de filosofia, antropologia, ontologis, mix de tudo, bacante, celebrante, iconoclasta e não conformado
A FALECIDA vapt vupt
direção ANTUNES FILHO
Antunes relê Nelson Rodrigues
Inspirado pela videoarte, diretor apresenta no Festival de Rio Preto a peça A Falecida Vapt Vupt, sua versão contemporânea de um clássico.
Frequentador assíduo de exposições de arte, o diretor Antunes Filho ficou chapado, segundo suas próprias palavras, diante da mostra Cinema Sim - Narrativas e Projeções, que ocupou o Itaú Cultural no final do ano passado. Aquelas tecnologias de distorção, repetição e sobreposição de imagens, que discutiam a própria imagem, provocaram um choque criativo no encenador que buscou um texto clássico de Nelson Rodrigues para conceber seu mais recente espetáculo, A Falecida Vapt Vupt, um dos destaques do Festival Internacional de Teatro, que começa na quinta-feira, em São José do Rio Preto.
"Eu precisava colocar para fora a minha insatisfação com o teatro atual", comenta Antunes, um irrequieto senhor de quase 80 anos (completa em dezembro). "Afinal, por que o cinema pode sobrepor imagens e o teatro não?" Assim, ao contrário do modelo tradicional, em que uma luz conduz o foco narrativo do espectador durante uma montagem, em A Falecida Vapt Vupt são colocadas realidades paralelas convivendo no mesmo espaço, criando, às vezes, uma sensação de sonho, no qual nada faz muito sentido. "As cenas estão esparramadas, obrigando o espectador a procurá-las. É como se estivesse caminhando em uma rua: uma criança que canta, um cego que pede esmola, um acidente. Depois de alguns instantes, o espectador começa a perceber essa simultaneidade de cenas."
Para isso, Antunes concebeu como único cenário um bar, onde todos os personagens se reúnem. A encenação começa quando a atriz Bruna Anauate, no papel de Zulmira, circunda as mesas e, de repente, começa a bater palmas, diante do que seria a casa da cartomante Madame Crisálida. Trata-se da primeira cena de A Falecida, de Nelson Rodrigues, que conta a história dessa mulher, moradora de um subúrbio do Rio de Janeiro, casado com Tuninho, desempregado e fanático torcedor do Vasco da Gama. Convencida de que sofre "do pulmão" e de que vai morrer, Zulmira tem apenas um desejo. Quer o mesmo enterro de luxo que viu uma vez, quando criança, com cortejo e carros com penacho. Ela encarregará Tuninho de conseguir o dinheiro necessário à realização de seu sonho.
O texto é cáustico, amargo e também carregado de humor negro. E, se em Vestido de Noiva o dramaturgo inovou ao sobrepor o tempo presente com o onírico, em A Falecida ele acompanha os deslocamentos do cotidiano sem se concentrar em um único cenário - a fragmentação das cenas permite que seja breve a passagem de uma cena para outra e com o mérito de surpreender o essencial e suprimir os excessos. Ou seja, um manancial propício aos anseios artísticos de Antunes Filho.
"O que me interessa é mais a sensação que a compreensão imediata", afirma. "Quero discutir a expressão do teatro hoje. O mundo não é mais centrado como mostra o teatro, o cinema, a fotografia. A videoarte é a que mais se aproxima de um retrato da realidade frenética. O espectador pode escolher o que olhar."
Ele encontrou em A Falecida o texto que servisse a esse conceito. "Eu terminara de montar Senhora dos Afogados, também do Nelson, que ainda seguia uma linha clássica de fazer teatro e percebi meu enjoo com a encenação tradicional."
Na verdade, o mal-estar começara a se materializar antes, quando Antunes montou Foi Carmen, que reestreia amanhã, no Sesc Consolação. Trata-se de uma obra poética sobre o imaginário popular de Carmen Miranda. E, ao mesmo tempo em que estimula uma reflexão sobre o fetichismo e os estereótipos além dos arquétipos, Antunes faz ali seu primeiro estudo sobre o tempo. Em Foi Carmen, a encenação é cheia de vãos, de silêncios, e os movimentos são lentos, quase um haicai. "Já em A Falecida Vapt Vupt o próprio título diz tudo: alta velocidade, chegando a ter quatro ações no mesmo local", observa o encenador. "Uma montagem complementa a outra. Gosto de estudar o tempo como substantivo e o ritmo como adjetivo ou advérbio."
Em meio a esse frenesi, a plateia primeiro usufrui da emoção - a compreensão, segundo Antunes, vem depois, paulatinamente. "De madrugada, já em casa, o espectador vai se lembrar de instantâneos: um sanduíche sendo mastigado ali, o garçom servindo ali. É possível reinventar o espetáculo. Você se transforma em VJ de si mesmo."
Tal reação já foi sentida por públicos distintos, pois, antes de seguir para Rio Preto, onde será apresentado do dia 22 ao 24, A Falecida Vapt Vupt foi encenada no Recife, em março, e na cidade do Porto, em Portugal, em maio - em São Paulo, estreia no dia 14 de agosto, no Sesc Consolação. "Em Pernambuco, as pessoas viam a miséria humana de fora do teatro através do espetáculo, que aguçou sua sensibilidade e criou uma linha direta com o pensamento", conta Antunes, que tomou a liberdade de colocar um personagem que observa todas as cenas - trata-se do próprio Nelson Rodrigues, acompanhando a vida como ela é.
Ao longo de toda a montagem, um aparelho de rádio insiste em ficar ligado, transmitindo músicas de Cartola sem parar, recriando o ambiente típico do subúrbio carioca, onde o ritmo também é frenético. "É o reflexo da sociedade de consumo que não distingue classe social", observa o diretor. "Com isso, o espectador sai ativado do teatro, sentindo-se tão atordoado como fica no seu dia a dia."
Antunes reconhece que a sobreposição de realidades de Vestido de Noiva talvez o tenha influenciado inconscientemente, ainda que A Falecida escrita por Nelson não tenha a mesma simultaneidade. "Foi difícil processar internamente essa mudança", diz. "Muitos têm medo de sair da trilha. Não é meu caso: percebi que não posso mais lidar com o teatro da forma como vinha fazendo. Gostaria de refazer tudo que já fiz." Na impossibilidade, ele continua exercendo sua inquietude, agora trabalhando em O Triste Fim de Policarpo Quaresma, seu próximo projeto.
Tragédia carioca
A Falecida pertence às "tragédias cariocas", na classificação proposta pelo crítico Sábato Magaldi para a obra de Nelson Rodrigues. São textos que, ao contrário das peças "míticas" como Álbum de Família e Senhora dos Afogados, retratam de modo tenso, implacável, o cotidiano de figuras que o dramaturgo arrancou das ruas do Rio de Janeiro, cidade que adotou como sua (ele nasceu no Recife).
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